sábado, 23 de agosto de 2008

Brumas da Paixão: Sonho de menina.

Uma vaga nuvem passa por aquele lugar. “Parece que estou no céu”, ela pensa, mas não é bem isso... Ela sabe que está sentada num banco extremamente familiar, cercada por um ar inconfundível de pano molhado há dias, num escuro até certo ponto confortável e seguro. Ela sabe que espera ali um ônibus amarelo pálido e tingido de ferrugens em certas partes. Seu nome não importa muito ali, tanto quanto seus olhos verdes, seus cabelos negros, sua franja, e sua pele pálida, ela sabe... Ela sonha.
Um ruído gago e agudo de ferro contorce-se naquele ar embaçado como uma sauna quente anunciando a chegada do ônibus velho. As portas se abrem. Ela entra porque sabe que deve entrar. Ela sabe que é por isso que está ali. O motorista acompanha-a com olhos cadavéricos, profundos e vazios. Ele é preto e branco como o resto dos passageiros que oscilam presos em suas poltronas. Ela senta no único lugar que sempre sentou, na cadeira no fundo de frente pro corredor. Ela lembra que no letreiro da condução está escrito... Escola.
O ônibus segue seu caminho. Ela pensa por um momento no quão silenciosa é essa viagem e se pergunta como pôde jamais reparar nesse detalhe. Ela pode escutar alguns corações abafados batendo a seu ritmo e as respirações baixas e profundas de cada pessoa ali dentro... Mas... O ferro gago e agudo de novo rasga o clima anunciando o destino da condução. Ela olha pro lado e vê uma placa iluminada por uma luz cansada e entristecida: Escola.
Todos descem andando num caminhar pálido e líquido. Por um momento ela acha ter visto um homem e uma mulher parados ao longe observando seu caminhar. Ele fumava um cigarro e a encarava acompanhado de uma mulher de cabelos castanhos, todavia sumiram como o último quadro de um filme rolando num projetor antigo. “hã?!” Ela pensa por um instante até voltar a si e ter certeza de que aquilo não importa muito.
Seguindo caminho ela vê um prédio antigo que parece estar abandonado. Ouve barulho de corvos e pensa que aquilo é coisa de cinema B, porém continua andando magneticamente ao encontro daquele gigante de tijolos avermelhados e sujos encruados com lembranças de chuvas ancestrais. Ela entra pelo portão principal e encontra um pátio cinzento vazio... Onde estão todos? Essa pergunta ecoa na sua mente fazendo-a olhar pra trás e ver que os alunos se esvaem em pequenas brumas gélidas assim que adentram no gigante abandonado. Sua cabeça se volta pra frente obedecendo à vontade de seus olhos. Devagar, depois de dar uma volta por cada detalhe daquele pátio fantasmagórico ela vê uma escada em caracol feita de ferrugem e tempo. Então... Caminha...
Cada passo dela bate na escada e fazendo nascer umas notas funestas com timbre de calafrios. Ela percebe que uma goteira acompanha seus passos lentos e cautelosos. Quando termina o destino da escada ela se esvai e só resta uma sala empoeirada, ela e uma figura sentada numa cadeira.
Cadavérica, aquela figura vira-se pra ela dobrando o pescoço lentamente em direção a moça. “Olá” diz a voz rouca e feminina. A moça sentada na cadeira é extremamente magra como se não tivesse órgãos dentro de si. Seus olhos sem pupilas são dois amontoados de veias rubras nos globos brancos. Ela não tem orelhas, nem cabelos. Sua pele parece rasgada pro ferro quente em certas partes cauterizadas. Seus lábios são finos como duas cortinas escondendo os dentes apodrecidos dentro do preto das gengivas. Suas mãos são suportes pros dedos compridos que apontam pra ela e fazem um sinal ao comando da voz... “Chegue mais perto...”. Ela ouve e obedece. É estranho, mas ela sempre encontra com essa mulher, então, já está acostumada.
“Você já aceitou quem sou, menina?”. Antes que pudesse abrir a boca e lembrar que já escuta isso há milênios. A sala fica escura, como se alguém tivesse desligado a luz. Ela começou a escutar gemidos de dor, berros estridentes de crianças perdidas, ranger de dentes, barulhos de açoites, cada coisa que servia pra fazer seu coração bater mais forte... Até que sentiu seu corpo ser jogado contra a parede e transpassado por correntes e anzóis... “Aaaaaaaaaaaaaaaaa...”. Gritou... Mesmo sabendo que era inútil. A figura aproximou-se dela carregando uma criança pelo pé. Ela chorava bem forte... Até que parou engasgada pelo sangue.
“Diga “olá” pra mamãe”. Disse a mulher demônio. Ela, por um momento, achou que estaria no que chamam por aí de inferno, duvidou de seu sonho, porque não se lembrava bem dessa parte. Isso tudo era bem cinzento...
Seus olhos a levaram a uma sala empoeirada e úmida. Pelas janelas lacradas com papel passava um filete de luz que ela podia jurar que era do sol. Ela estava sentada de frente pra uma mesa cheia de pastas com muitos documentos que guardavam além de suas letras, poeiras e marcas de café, relatos de vidas e suas tristezas. Uma página lhe chamou a atenção. Velha como as outras, mas contava uma coisa bem particular. Ela leu e percebeu que ali tinha um poder antigo de fazê-la chorar. O passado voltava à tona e ela tinha que encarar os fatos. Enquanto chorava ela ouviu um barulho horrível e estridente. Era a mulher demônio que arranhava uma lousa que jorrava sangue. Daí ela pensou que estava errada... Não parecia cinema B, era cinema Trash!
Ela observou estática, aquele sangue se contorcer no chão como uma lesma quando entra em contato com sal... Aquela gosma tomou forma de uma criança de pouco menos que um ano de vida, mas sem pele e coberta de sangue e outros fluídos que ela não conseguia identificar bem, mas eram realmente nojentos. Estática ela viu a criança gritar como um cão raivoso, pular sobre ela e morder seu pescoço... “Aaaaaaaaaaaaaaaaa...”. Gritou... Novamente sabendo que era inútil.
Ela estava numa sala pendurada pelos pés, como? Ela nem poderia imaginar. Só pensava em que hora o sonho mudara e por que ela não tinha mais controle sobre ele. Ela matutava com uma mente tagarela que já não lembrava mais nem da hora em que foi dormir, se havia escovado os dentes, tomado um copo de leite ou que pijama teria vestido. As coisas que ela achava normal estavam embaralhadas no que estava vivendo, daí lembrou que nunca tinha vivido esse sonho até o final.
Ela escutou passos pisando n’água pesada aproximando-se. Ao abrir os olhos viu pés de uma pele rasgada por açoites, e descobriu que não era água, mas vômito de algumas coisas que ela nem quis saber na hora, só percebeu que seus pulmões foram invadidos por aquele cheiro azedo. A voz rouca pronunciou: “Viu a bagunça que você fez, menina?”. A demônio tossiu uma gosma preta e continuou: “Viu a bagunça que você fez? Vou ter que arrumar tudo agora?”. Ela gritou quando percebeu que sua calça, camisa, nariz, boca e todo lugar que ela podia sentir estavam sendo percorridos por milhares de baratas famintas... Ela sentiu... Mas não conseguiu gritar... Porque por mais que se debatesse... Elas estavam na sua garganta... Era inútil...
Ela voltou a si quando sentiu novamente os pesos das correntes que a tinham amarrado e perguntou-se por um instante se nunca teria saído dali. A dor era sublime. Ela queria gritar e acreditem... Se pudesse... Ela teria gritado muito alto... Abriu os olhos e viu uma menininha segurando um balão. Ela pensou que aquela criança deveria ter uns quatro anos. Ela pensou porque estava vestida de bolinho e segurando um balão vermelho... Quando olhou o balão começou a se lembrar de sua vida, cada fato, mágoa ou coisa que tenha gerado pra si e para ou outros direta ou indiretamente... Lembrou de sua infância... De sua juventude roubada... Sentiu saudades daquele ônibus amarelo sujo e enferrujado... Pensou em cada coisa que nunca havia tido dado muita atenção... Percebeu que do balão flutuante começou a jorrar sangue amarelado e doente... Olhou pra menininha e viu o rosto daquela demônio que a recebera naquele sonho, ou seja lá o que for, enquanto as correntes rasgavam sua pele devagarinho... Ela ouviu uma voz rouca dizendo: “Você já aceitou quem sou, menina?”.

Fim?